sábado, 16 de agosto de 2008

sábado, 2 de agosto de 2008

Numa sexta feira de chuva...

Quando terminei a faculdade de Odontologia, há quase um ano, fui preparado para atender pessoas que precisam de ajuda. Sim, pessoas que precisam de ajuda com seu sistema estomatognático. Certo. Só que um detalhe por tras desse "sistema" é que ele faz parte de um organismo, que é um conjunto de sistemas. Não é?
Pois então, aí começo mais uma história. Sete e meia da manhã, entro no consultório, e dois pacientes apressadinhos, já conhecidos, esperam pelo atendimento, que deveria começar meia hora depois. No meio dos rostos desconhecidos um semblante sofrido, contorcido e meio desfigurado chorava.

"O senhor é o Dentista? Me ajude pelo amor de Deus!"

Nunca ouvi um pedido de ajuda a mim tão pesaroso e intenso. Há meses trabalhando em urgência Odontológica ninguém com nenhuma dor, por mais intensa que fosse, tinha demonstrado tanta clemência. Respondi que ela dissesse o que estava acontecendo e que no que eu pudesse, estava ali para ajudá-la. Enquanto isso uma agonia ja se prendia dentro do meu peito...

" É uma urgência doutor, mas não é para mim. Meu marido era idoso e faleceu há dez dias, só que dois dias antes fez uma "remoção de tártaro" no dentista... "

Se tinha sangue na minha face, ele sumiu. Foi eu? Pensei. Não, não pode ter sido, nunca agiria assim, sem a devida precaução. E minha tranquilidade foi que ela ao terminar a frase acima, completou:

"Mas não foi aqui, foi em outro lugar, sujo, feio, e com uma energia horrorosa..."

A angústia que tinha dado lugar ao medo momentâneo de que algum colega da mesma clínica que eu tivesse cometido um erro irreparável, voltou.

"Eu disse a ele doutor, não faça tratamento nesse lugar, não vai dar certo, mas ele insistiu e disse que "Deus proveria", me ajude Doutor, tô desesperada, me diga apensa se há alguma relação entre o que o dentista fez com ele, ou se não. Me fale doutor, eu preciso saber disso, pra continuar vivendo, seja do jeito que for, essa angústia tá me consumindo..."

Eu não sabia o que fazer. Biologicamente poderia haver envolvimento sim, mas quem sou eu para falar alguma coisa? Não se pode culpar nada nem ninguém sem que hajam critérios para isso, e falar à alguém tão emocionalmente abalado, que poderia sim haver relação era assinar um atestado de culpa ao outro profissional. Só tinha vontade mesmo de abraçar a senhora, que tinha idade de ser minha tia mais velha, ou talvez minha avó. Aí vem o velho ditâme da Psicologia na Odontologia: " Esteja distante do paciente, mas se ele tentar se aproximar, não o evite, apenas mantenha o limite: profissional - paciente" Mas, emotivo como sou eu... Não a abracei, seguindo o aprendido, afinal ela não se pronunciou à isso.

"Ele era cardícaco Doutor, mas era uma pessoa cheia de vida, cheio de si. Vivia fazendo planos para o futuro , e acontece isso..."

Pensei em usar o velho: "Isso acontece, chegou a hora dele..." Mas odeio ouvir isso, e estou aprendendo que não é uma boa frase de fulga quando não se tem muito o que falar. Mas disse a ela que não havia uma relação direta, que ataques cardíacos tem causas diversas... Com meu coração na mão ouvi:

"Mas Doutor, será possível? Minha vida perdeu a razão e tudo pode ter sido culpa de um dentista sujo, incopetente e relapso! O que o senhor acha, que pode não ter relação não é? "

Repeti tudo que já tinha dito e a mulher que ainda chorava descontroladamente, levantou. E quarenta e cinco minutos depois de ter começado a falar de sua angústia, pegou em minha mão e disse que eu tinha tirado um fardo de suas costas. Não entendi muito bem, não seria culpa do Dentista? Do Médico? Não sei, só sei que em seu processo de culpa, ela era, pra si própria a maior culpada por ter perdido o marido, que segundo suas próprias palavras era a razão de seu viver. Com todo pesar do mundo disse que procurasse o médico e que se pudesse procurasse tambpem um psicólogo, que esse sim, a ajudaria muito.

"Obrigada Doutor, fique com Deus, e obrigada por me ajudar!"

Escrevo isso e minhas mãos ainda ficam suadas, trêmulas. Não sei porque as emoções fortes, mesmo que sejam vindas de pessoas completamente estranhas, mexem tanto comigo.

Segui o dia todo trabalhando, e sempre que parava para pensar o rosto de sofrimento, dor e lágrimas vinha a minha cabeça.

Acho que ajudei, não fui preparadona universidade para acalentar pessoas em desespero, e sabre o que dizer a elas em certos momentos, mas talvez a vida e algumas pessoas que passaram e passam no meu caminho tenham me ensinado muito sobre isso. Fiz o possível. Mas sigo pensando, será que vale a pena fazer Odontologia assim? Pondo em risco, estando no limite, sem se precaver?

Que Deus ilumine todos os que cuidam de seres humanos, fazendo que lembrem-se sempre: são seres humanos.