domingo, 16 de novembro de 2008

Ai, ai, Hipócrates...

Eu sei que há um ano e dois meses eu jurei, de camisa preta de manga longa apertando o punho, que teria a saúde de meu paciente como a maior preocupação. Certo. Mas daí surge o plantão. E não existe nada pior que o plantão de sobreaviso. Voce não sai, porque se sair um trânsito monstro pode lhe impedir de conseguir voltar a clínica, que fica almost, do lado de sua casa. Voce não vai malhar porque no meio de uma corrida na esteira, o telefone pode tocar e voce vai ter que tomar um banho correndo e sair sem saber direito porque seu corpo ainda transpira como se voce corresse a 15 km/h; voce não vai no cinema porque no meio da sessão, naquela hora, a melhor de todas, no beijo do mocinho ( Lisbela's modes on ) uma vibração pode acontecer no seu bolso, e voce sair da sala em meio a olhares de tipo :

"Ow, esse idiota não gostou do filme não foi?"

Voce não vai num restaurante porque entre o couvert e o prato principal, ou pior entre esse e a "overtable" alguém te liga : Doutor, mais uma. E finalmente quando voce se rende e dorme, dando sua noite como perdida, um número estranho insiste em perturbar, ligando a cobrar.

" Doutor, é fulano da portaria do Centro Médico... É que tem uma urgença aqui."

Então, depois de um minuto sentado na cama, destilando aquilo tudo, olha pro seu amigo Pimpo, companheiro de anos, e levanta. Tira seu pijama de ursinhos, que insistentemente lhe olham e perguntam: Do you think I'm sexy? E aproveita que penteado out of bed é cool pra dar um pouco de graça na coisa.. sai e chega sorridente e perguntando:

" O que foi que houve? Tá com dor de dente? "

Sim, sorridente. Porque não há coisa pior que ser atendido por um profissional de saúde no seu plantão, quando esse está de cara feia, amassada, e mal humorado. Confesso que das vezes que precisei ir num hospital numa situaçao dessas, sempre tive medo. Medo da figura descontar todo o ódio por estar ali na minha pobre carcaça. Enfim, depois da pergunta lançada a queima roupa, no elevador mesmo, voce ouve :

"Não doutor, não dói não. Mas quebrou e tá me incomodando."

Certo. "Incomodando". Isso é suficiente para tirar um ser humano do seu sono, em pleno domingo as três da manhã? E onde estaria a sensação de ter o poder de remover a dor, e ver um rosto contorcido se abrir? Isso pagaria todo o incoviente e acenderia a chama da idéia do juramento, (aquele com a camisa de manga longa) dentro de mim. Mas sem isso... Meus olhos já mudaram.

Poxa, mas num adendo, anti- ética a parte, voce passa a noite, com seu marido, namorado, rolo, que seja, num bar tomando cerveja num copo americano " Nadir Figueiredo" comendo óleo com bolinhos de bacalhau, quebra o dente no meio de um forrozeio qualquer, e me tira da cama pra "emendar"? Dava pra esperar o sol nascer não?

Well, como dizia, meus olhos mudaram, e aí eu me torno mau.. Um metro e meio, blusa de veludo preta ( Oi? Recife, 35 graus?), alças de soutien de fora, uma calça tão apertada que as inflamações celulares gritavam: me solta, me solta! Maquiagem borrada, cabelos levemente esvoaçantes. Não desculpa, bondade minha, cabelos altamente esvoaçados. Homem acompanhando e cheirando mal, literalmente. E assim eu pensei : Meu Deus, por que?! :)
Mas tá bem, minha mãe e meu pai me educaram bem, e eu agi bem:

"Certo, quebrou? Vamos ver isso."

E ela senta na cadeira, depois que um dentista que em noites de plantão faz jornada dupla sendo ACD ( Auxiliar de Cirurgião Dentista) também, ligou um compressor, dois slipts e um equipo odontológico e se montou com seu kit EPI, lhe pedir:

"Vamos lá, pode sentar"

"Aqui? "

Como assim "aqui"??? Pensei. Lógico né? Será que ela nunca, na sua existência viu um dentista trabalhar? Nem na TV?

E ela se contorcia de dor. Dor?? DOR??

Cena. E das mais grotescas, mas um:

" Moça, por favor, assim eu não consigo trabalhar! "

Resolveu tudo em segundos.

E então?

Como disse minha querida irmã: Foi eu, você e uma bola de resina!

E urgência não faz coisa provisória? É. E provisório de dentista não é aquela coisa branca que tem cheiro de dentista? É, mas a prova maior de que eu quero entrar no céu é que restaurei o dente de verdade, com resina composta de verdade, numa consulta de urgência.

Por fim, ela me pediu um espelho, olhou o dente, sorriu e passando a mão na região abdominal ondulada de sua blusa de veludo "negro" disse :

"Valeu, doutor! O senhor salvou minha vida!"

Salvei a vida? Por ter restaurado um pedaço de dente fraturado? E ela saiu...
E eu tirando o material da mesinha e pensando ( mundo de Bobby turned on) porque salvei a vida? Será que ela usa o sorriso pra alguma coisa...
Ah, nem comento o que passou na minha cabeça. ;)

Voltei pra casa. Som nas alturas, Magamalabares turned on num sedan preto cruzando a Madalena velozmente.

"Pronto, cheguei em casa, e tô mais puto ainda"

"Calma, relaxa, fica assim não"

Três e meia da manhã, e eu fui dormir. E as seis da manhã again : "Doutor, urgença."

Aí sim, out of bed hair, out of bed face. Edema facial era nada perto daquilo ali...

Voilá! e novamente a frase pronta:

" O que foi que houve? Tá com dor de dente? "

E novamente a queima roupa, no elevador, porque ai meu raciocínio lento, de quem tá com sono, já vai arquitetando uma solução eficiente e rápida pra tudo aquilo.

Mas dessa vez, um pobre senhor, com uma real urgência, esperou o sol nascer pra vir e procurar ajuda, muito mais digno né? :)

Voltei, e dormi. Muito.

E aqui estou eu, um dentista com um ano de formado encarando um plantão de 48 horas, e esperando, sem poder sair pra nao pegar trânsito, sem poder malhar pra não ficar suando depois do banho corrido, sem poder ir no cinema e perder o melhor da coisa, sem poder comer fora pra nao ter que pagar a conta e deixar de gorjeta a sobremesa que pedi e não pude comer, e acima de tudo tendo medo do toque do próprio celular... sim, "tema do limão" no celular, nunca mais.

Mas mesmo assim, feliz. Feliz por ter quem me apoie. Por ter quem diga:

"É assim, mesmo, relaxa homem. Mas, oh "enfia a faca" neles lá"
(adoro)

Por ter quem me dê um sorriso e diga:

"Vai lá, início de carreira é assim mesmo, as três da manhã. "


Mas que a baixinha do veludo me paga...
Ahhh, me paga.
:)

4 comentários:

Olavo Coelho disse...

Hehehe, adoro!!!!
Fiquei ontem imaginando os meus pacientes, me ligando as três da manhã, pra falar que estão triste demais pra dormir. Vou ter que me controlar pra não falar o que Freud diz em um texto de seus livros. Não posso reproduzir aqui porque é proibido para menos de 18 anos. Bjs

O Menino que Voa disse...

perai que eu to tentando me levantar do chão de tanto que eu ri (flexionado, sem o R que o povo da internet TEIMA em usar) do seu post. Carajo, me senti na sua pele! E eu SEI o que é estar de sobreaviso! Díos mío como eu sei! :D AMEI!!!! E me diz... VELUDO em RECIFE? Deveria ter feito TUDO sem anestesia, porque se essa criatura não sente CALOR, DOR é que ela não iria sentir MESMO!

rafa. disse...

morri de ri! hahahahaha eu vc numa bola de resina!

rafa. disse...

mar veludo é maraaaaaaaaa! hahahaha fresquinho!